domingo, 7 de julho de 2013

Carta de adeus ao velho avô

A necessidade de uma despedida acaba pesando mais do que a própria ida. Ainda é difícil de acreditar, parece que vou chegar na casa da minha avó e encontra-lo em sua cadeira de balanço a qualquer hora. Nesse momento, maior do que o adeus, maior do que entender o que é esse abismo que se estende para além da vida e de nós, é processar como tudo isso aconteceu tão depressa e levou de nós o nosso exemplo, o nosso forte. A gente sabe que uma hora ou outra, todo mundo sai daqui, deixa esse mundo louco que comporta tantos absurdos e injustiças. Sabemos disso. Mas não da pra prever a hora de ninguém. Talvez ele já soubesse. Talvez ele tenha arrumado tudo para que fosse embora sem dor, e sem prolongar o nosso sofrimento. Tudo isso aconteceu rápido demais. Primeiro, a doença. A temerosa doença. Depois a internação, as recaídas, o quadro de delírio e o fim. Eu ainda pensava que o teria de volta até dias atrás. Parece que estava ainda dentro da minha própria bolha de proteção, ignorando a verdade e a dor. “Nada vai acontecer, ele vai ficar bem. Ele vai ficar bem.” A gente sempre se esconde da morte e sempre se surpreende quando a encara independentemente de sabermos de cor e salteado que o fim de todos nós será o mesmo. Passamos a vida inteira ignorando o abismo que paira sobre o nosso lado fingindo não ver o quanto somos frágeis. Fingindo não ver o que não conseguimos entender. Na sexta feira, chegando ao hospital, de repente, a minha ficha caiu. Eu não compreendi na hora, ainda relutava. Mas alguma coisa me fazia chorar, me fazia entender que havia chegado. E assim consegui me despedir dele. Deitado na cama, sem conseguir falar, parecia dormir, mas alguma coisa me dizia que ele ouvia tudo o que eu queria falar. Eu estava sozinha no quarto com ele, entendi que era a minha vez. Parei ao seu lado e desejei, com o menor resquício de esperança que havia ainda dentro de mim, que ele melhorasse e voltasse logo para casa. Alguns segundos depois eu pensei melhor e pedi apenas que ficasse bem. As lágrimas caiam dos meus olhos e pingavam no lençol. A minha vontade era de sacudir o seu corpo, berrar e implorar pelo meu avô que parecia não estar mais ali. O meu avô que há dois meses era saudável. Um pouco esquecido, é verdade, mas saudável. Mas o meu pedido foi atendido e ele ficou bem. Quem não ficou fomos nós, os que ficaram. Os que ainda estão presos dentro dos seus sonhos e ambições impossíveis. Até a minha avó estava com as dela. Diz agora que não quer saber mais de nada, nem de festas, nem de reuniões, de nada. Mas eu tenho certeza que alguma força vai sair de dentro dela e vai coloca-la pra cima de novo. É triste demais ver alguém perder o companheiro da vida inteira. O desespero que lhe subia a garganta e os olhos. Como se o seu coração sufocasse, implorasse por outro destino. E então ela parava, com o olhar distante, e perguntava para qualquer um que estivesse ao seu lado: "Ele foi embora mesmo?" E ela continuava com o mesmo olhar. O olhar perdido, sem rumo, revelando a confusão que havia dentro de si.

Ao meu avô, então, eu deixo uma salva de palmas, muitos agradecimentos, e, claro, uma enorme saudade. A poeira dos dias vai passar por nós até que possamos aceitar que a vida tem dessas coisas. O meu avô é a primeira pessoa que eu vejo morrer. A primeira pessoa que eu conheço e sei que não vou mais encontrar. Todos me falam o mesmo, alegando que ele está num lugar melhor agora. É cliché, mas tudo que convém a esse momento também é, e eu realmente acho que ele esteja. O meu avô que lutou a vida inteira, que saiu de uma cidadezinha do interior da Bahia para completar o ensino médio em Salvador. Formou todos os irmãos, depois casou e construiu uma família aqui no Rio. O meu avô que, através do estudo (coisa que ele sempre falou), conseguiu, talvez, mais do que supunha um dia. O meu avô que me apresentou a literatura e passou para a mim a mesma paixão. Ele comprou meus primeiros livros, me deu quase inteira a obra de Shakespeare quando lhe pedi, assistiu as minhas peças e aplaudiu na primeira fila. Como ele vai fazer falta! As coisas ainda estão confusas, tenho a impressão que estão fora do lugar. A pessoa vai embora e parece que deixa aqui, de diferentes formas, pequenas representações. A cadeira de balanço ainda me faz lembrar imediatamente. Os quadros nas paredes. A casa. O quarto ainda não consegui entrar. E nos livros eu nem penso em tocar ainda. O meu avô que infelizmente não conseguiu acompanhar tudo o que gostaria, mas que certamente ensinou o bastante para as gerações seguintes. Descanse meu avô, descanse e cuide e de força para nós aqui. Nós que tanto sentimos a sua ausência, que tanto relutamos em aceitar, mas que agradecemos o fim de todo o sofrimento. Fique em paz.

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