segunda-feira, 30 de julho de 2012

Sozinho


          Eram quase nove horas de uma manha ensolarada de domingo quando me dei conta de que já era dia. O sol tentava penetrar meus olhos, cegos com a claridade. Meus olhos se contraíam. Desisti de tentar mantê-los abertos.
            Não conseguia voltar a dormir. A claridade ainda me doía mesmo quando eu me recusava a ver. Virei de lado, contra a janela, e vi a sombra das coisas que pertenciam ao meu quarto. As coisas que eram minhas, somente minhas. Vi meu corpo deitado sobre a cama e mexi lentamente meu braço para cima para vê-lo como sombra também.
            Levantei-me e continuei a encarar minha imagem na parede. Virei-me novamente para a janela, onde o sol brilhava ainda mais que antes e era capaz de queimar minha pele lentamente.
            O telefone começou a tocar no outro cômodo e me acordou dos pensamentos melancólicos. Meu olhar seguiu a direção do som, mas quando meu corpo ameaçou se levantar, fui vencido por um cansaço mental. Então permaneci sentado à beira da cama, mirando o chão e as sombras das coisas ao meu redor.
            Fiquei assim, sentado, imóvel, durante algum tempo. Não sei bem quanto. Dessa vez, voltei à realidade quando meu estômago reclamou por comida.
            Deixei finalmente o quarto e fui em direção a cozinha. Arrastando meus pés pela madeira escura. Abri a geladeira e fiquei vidrado na sua luz interna. Não me deixava cego, nem fazia meus olhos doerem. Era diferente. Fechei a geladeira, esquecendo-me porquê tinha aberto. A fome acalmara.
            Passei o dia assim. Afogado em pensamentos ilógicos. Absorto em sua problemática que, de alguma forma, tinha a ver com a minha vida. A realidade fora dali parecia um passado distante. Nada do que vinha de fora me atingia. Só aquela luz. Aquela maldita luz.
O telefone voltou a tocar. Tocava e parava, num intervalo quase cronometrado. Acho que ouvi a campainha também, nesse meio tempo. Mas era um som mais distante. Até que, por um longo momento, tudo ficou silencioso. A rua, o telefone, a minha cabeça.  Comecei a me sentir sozinho. Pequeno demais para o tamanho do mundo que me cercava. Voltei pro quarto. Tudo escuro novamente. Que bom. Voltou ao normal.
            Deitei em minha cama, imutável. Estava da mesma forma que deixei quando acordei. Fitei o teto por um instante. Mexi meus braços e pernas procurando pelas sombras... Não encontrei nada. Deitei de lado e olhei a parede. Repeti os movimentos. Nada.
Comecei a me perguntar se aquela luz era realmente importante. Adormeci.
Abri os olhos algumas vezes. O telefone tocava. As janelas batiam. As portas também. Cochilava. E tudo voltava a se agitar. Dentro e fora daqui. Voltava a dormir. Sonhos escuros, borrados. Misturados àquilo que me fazia pensar ser a realidade.
O despertador não tocou. Olhei para o relógio, tentando entender que horas eram. Mas os ponteiros também não se mexiam. Novamente o sol me invadiu a minha retina. Encarei-o, como encararia um inimigo num duelo mortal. Sentia meus olhos arderem. Insisti. Mas então fechei-os novamente, me rendi sem me dar conta. Passei a mão pelos cabelos procurando arrancá-los, mas não tive sucesso. Não eram eles que faziam minha cabeça pesar.
            Corri para a sala fugindo de tudo que estava atrás de mim. Olhei para os lados, procurando algum olhos que estavam atrás de mim. Em algum lugar, escondidos. Mas não encontrei. Eu estava sozinho. Como sempre.
            O telefone voltou a tocar. Estava bem diante de mim. Engoli um pouco da saliva presa à garganta e olhei novamente ao meu redor. Dessa vez procurando uma desculpa para fugir daquela chamada.
            Resolvi encará-lo. Peguei o telefone e pus em meu ouvido, sem dizer uma palavra.
            - Alô? Alô, Sérgio? Meu amor, você tá vivo?
            - Eu tô legal.
            - Porra! Aonde você se meteu?  O que aconteceu com você?
            - Eu tô bem, a gente se fala depois.
            Coloquei o telefone na linha antes de arremessá-lo ao chão. Que raiva! E por que era esse o sentimento que me possuía? Por que não era de alegria que vibrava o meu peito por saber que eu não estava só como imaginava? Por que nada daquilo que me pertencia parecia não ter mais sentido?
            As perguntas foram sendo jogadas pela minha mente como uma entrevista de emprego. Como uma sentença de morte. Tudo a minha volta começou a se confundir. Flutuar. Girando de forma gradual. Precisei de ajuda pra me manter em pé. Procurei por algum lugar seguro o bastante para me apoiar. Achei a cadeira, que caiu junto comigo quando apoiei o meu peso. Meu corpo caiu como uma pedra sobre o chão frio.
            Fiquei deitado ali por algum tempo, e apesar de acordado, não conseguia me mexer. Não sabia se estava consciente. Mas então, o que é estar consciente? Comecei a me perguntar há quanto tempo eu não olhava pras coisas com atenção. Não me lembrava como era o meu rosto. Por quanto tampo que eu andava por aí com os olhos vendados? Manchados de branco. E tons de cinza.
            E nesse momento, em que o meu corpo já estava quase tão gelado quanto o chão abaixo dele, percebi que o sol ainda brilhava lá fora. Levantei-me com dificuldade e caminhei até a janela. Debrucei-me nela e fitei aquela luz forte mais uma vez.
            Era fim de tarde e, teoricamente, aquela luz não deveria ser tão forte como no começo do dia, mas me doía da mesma maneira. Dessa vez, meus olhos não se fecharam. Não deixei. Eles encaram o sol até onde puderam. Pude sentir algumas lágrimas descendo pelo meu rosto. Me vi correndo no quintal da casa da minha tia quando era pequeno. Roubando bonecas da minha irmã só pelo prazer de dizer que eram minhas. Lembrei do dia em que saí de casa sem me preocupar com o que deixara ali. Sem olhar pra trás. Imaginando um futuro utópico, que nunca existiu. Percebi que nunca havia me importado realmente para o caminho que estava seguindo. Percorria-o porque tinha de seguir. Eu estava morto. E a culpa era minha. Minha em tentar fingir ter um vida completa que nunca sequer teve significado. Eu não tinha nada. Nada. Mesmo depois de passar uma vida acreditando possuir tudo.
         Subi no parapeito. Sentia o sol agora inteiro, em todas as partes de mim. Decidi fechar os olhos. O calor era até reconfortante, como um abraço. Mas doía demais em meus olhos. Era claro demais, não conseguia ver nada. Mesmo de olhos fechados.
         Mas eu não queria me esconder aquele momento. Não aquele. Seria crueldade demais não poder ver meu último suspiro.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Distante


Vejo correr a lagoa diante dos meus olhos e sentidos.
Saudade.
Reflexo do meu choro no vidro.
Confusão.
Pedaços de mim que deixei para trás,
Para longe de algo que me faz ser eu mesma.
Vazio.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Intruso


Parece que a minha mente se acostumou com você.

O seu rosto é comum nas janelas do meu quarto, nos reflexos do espelho, nas intimidades do meu corpo.

Já não o sinto mais entrar.

Abre a porta, caminha por todos os cômodos pisando forte no chão de madeira. Abre as gavetas, os armários. Desarruma a cama, suja os lençóis.

Me acorda.
Me machuca.
E vai embora.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Um Brasil Campeão


Aquele era um ano que certamente havia começado ao contrário. Parecia despreparado, infantil, exatamente como uma criança que se recusa a crescer e largar as bonecas. O medo era de deixar certos acontecimentos para trás porque o esquecimento é sempre possível, já que o tempo tratará de preencher-nos com novidades. Mas dói muito quando esquecemos e não nos damos conta. Dói mais ainda quando não somos capazes de lembrar.
Talvez eu tenha exagerado um pouco ao dizer que foi aquele ano que havia começado errado. As coisas andavam estranhas fazia já algum tempo, junto com aquela sensação de nostalgia sempre presente, afogada nas decepções e nas falsas esperanças.
O ano era 1994. E não é que eu ligasse realmente para futebol, mas naquela época do ano em 1990, papai havia voltado a andar torcendo pela nossa seleção.
O futebol sempre lhe foi fiel nas alegrias. Enquanto ele passava o resto do ano reclamando do país por conta da corrupção, da pobreza escancarada e constantemente varrida para baixo do tapete, da falta de educação das pessoas, da morbidez da juventude atual e até da deprimente qualidade da musica brasileira; o futebol era para ele a razão de seu patriotismo. Quando a seleção entrava em campo o Brasil não tinha mais defeitos ou imperfeições. Era visível a paixão que lhe ardia nos olhos, era bonito de ver.
Logo após a derrota da Seleção em 90, porém, o mundo parece que virou as costas para ele. Mal se recuperava de uma operação no joelho quando levou um tombo que o obrigou a voltar para o hospital e ficar preso numa cama por uma semana. A depressão não tardou a chegar. A partir de então ele foi só piorando. Perdeu parte da audição após uma infecção no ouvido esquerdo, voltou para o hospital após apresentar um quadro grave de anemia, mas o pior ainda estava por vir. No final do ano de 1991, chegou o pior dos pesadelos chamado Alzheimer.
Os anos mais negros de nossas vidas se iniciaram. Até me acostumar com a ideia de que, em breve, meu próprio pai se esqueceria do meu nome, das coisas que costumavam lhe fazer rir, o amor pela boa, pelo Brasil campeão, as maravilhosas memórias que havia vivido, ou mesmo de pequenas coisas como o que havia feito no dia anterior; até aceitar tudo isso, muitas alegrias passaram despercebidas.
Foi então que, durante uma tarde qualquer em que o Brasil jogava contra a Suécia, ele teve um sobressalto em frente à TV e simplesmente começou a torcer como antes. As lágrimas caíam-lhe dos olhos ao ver a bola dentro do gol, a paixão transbordava-lhe pela garganta. Ele sabia que estava agindo de forma inesperada, e talvez por essa razão comemorasse com ainda mais intensidade do que o habitual, como se soubesse que aquele poderia ser o último suspiro de vida da sua memória.
“Nós vamos ser tetra!“ – ele exclamou, como se nunca tivesse se esquecido de coisa alguma. Como se o futebol lhe estivesse protegido em um lugar especial, intocado.
No jogo seguinte, quando a seleção levantou a taça de campeã, ele voltou a vibrar de alegria. A memória novamente lhe retornava proporcionando um momento extremamente sincero de felicidade. Então ele pulava, cantava, berrava pela janela o quanto era feliz e não se lembrava.
A lucidez lhe durou uma tarde inteira, e lhe permitiu comemorar a vida com mais consciência e prazer. Tudo voltou ao normal depois disso, mas por aqueles breves momentos, seríamos eternamente gratos ao futebol, mesmo tendo durado apenas algumas horas. A felicidade é sempre bem vinda, por mais curta que seja a visita.
E viva o Brasil tetra campeão!

sábado, 7 de julho de 2012

Do Avesso


Parece que a mesma força que o empurra pra fora é também a que tanto te prende aqui dentro.

Parece que todo o meu desejo de mata-lo é fonte daquilo que o mantem tão vivo.

Já não sinto mais a necessidade de renovar nossos encontros. Juro que viveria muito bem se só me restasse o nosso passado. Nada de novo, mas tudo tão fresco.

Acho que o tempo esqueceu da gente.

Você já deveria ter partido. É preciso dar espaço para outras coisas, mais recentes e, por isso, mais intensas.

Mas não.

Sempre ao contrário. O avesso do avesso do avesso do avesso.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Compatibilidade


A gente desabrocha ao contrário.
Enquanto o meu corpo se abre, lento e temoroso, revelando aos poucos que poderia ser ainda perfeito caso o mundo também o fosse, os seus movimentos possuem coragem, não tem medo de exaltar uma beleza extrema, absoluta. Não tem medo de se abrir, nem a necessidade de esconder nada, simplesmente porque não lhe caberia esse direito já que tantas coisas belas cabem dentro de si.
Aos poucos, porém, revela-se ainda humano, deixando escapar seus defeitos e linhas invertidas, mas sem deixar de exalar o mesmo perfume. As suas imperfeições o acompanham na extremidade da beleza que consegue alcançar, como se fizesse parte de um mundo paralelo.
Se permitirem, nossos ciclos irão se esbarrar no meio do caminho. Se completar até, quem sabe. Mas eu já não sei mais em que etapa estamos. Não consigo compreender se concluímos um longo percurso, ou se mal conseguimos sair do lugar. Além disso, o vento pode carrega-lo para longe daqui, outras rosas poderão surgir, mais semelhantes com aquilo que somos, ou com aquilo que julgamos mais fácil parecer.
Ainda assim, eu insistiria em chama-lo de meu. De amor, de complemento. É difícil acreditar na inexistência de uma compatibilidade entre nós quando tudo parecia se encaixar de forma tão simétrica. Pois se assim for realmente, nada temos então. Apenas nossos sonhos nos restam, agora atirados ao chão.
Mas com você irei ainda viver, ao menos enquanto a imensidão da noite me permitir crescer tudo ainda o que julgo ter direito. Quero que o tempo passe depressa, que voe bem alto, mas que não nos leve para caminhos distintos. Se assim for, que nos reencontremos então, no momento exato em que eu tiver coragem suficiente para desabrochar na sua frente. Mas o tempo é grande, e é capaz de carregar muitas outras coisas. Não se pode prever as suas escolhas.
Por isso, pensando bem, é melhor que permaneçamos aqui, onde paramos. Não temos nada aparentemente, mas talvez, tenhamos tudo, não sei. Talvez a certeza de qualquer dúvida possa ser revelada somente com o tempo, nada mais. Mas se eu o apressá-lo, perderei os motivos que a vida há de encontrar para fazer com que eu mesma busque por um caminho mais fácil que você. Mas se pertencermos realmente à um mesmo ciclo, então nem o tempo, por maior que seja, poderá impedir-nos de realizar aquilo que tanto desejamos um dia.