Eram quase nove horas de uma manha ensolarada de domingo quando me
dei conta de que já era dia. O sol tentava penetrar meus olhos, cegos com a
claridade. Meus olhos se contraíam. Desisti de tentar mantê-los abertos.
Não conseguia voltar a dormir. A claridade ainda me doía mesmo quando eu me
recusava a ver. Virei de lado, contra a janela, e vi a sombra das coisas que
pertenciam ao meu quarto. As coisas que eram minhas, somente minhas. Vi meu
corpo deitado sobre a cama e mexi lentamente meu braço para cima para vê-lo
como sombra também.
Levantei-me e continuei a encarar minha imagem na parede. Virei-me novamente
para a janela, onde o sol brilhava ainda mais que antes e era capaz de queimar
minha pele lentamente.
O telefone começou a tocar no outro cômodo e me acordou dos pensamentos melancólicos.
Meu olhar seguiu a direção do som, mas quando meu corpo ameaçou se levantar, fui
vencido por um cansaço mental. Então permaneci sentado à beira da cama, mirando
o chão e as sombras das coisas ao meu redor.
Fiquei assim, sentado, imóvel, durante algum tempo. Não sei bem quanto. Dessa
vez, voltei à realidade quando meu estômago reclamou por comida.
Deixei finalmente o quarto e fui em direção a cozinha. Arrastando meus pés pela
madeira escura. Abri a geladeira e fiquei vidrado na sua luz interna. Não me
deixava cego, nem fazia meus olhos doerem. Era diferente. Fechei a geladeira,
esquecendo-me porquê tinha aberto. A fome acalmara.
Passei o dia assim. Afogado em pensamentos ilógicos. Absorto em sua problemática
que, de alguma forma, tinha a ver com a minha vida. A realidade fora dali
parecia um passado distante. Nada do que vinha de fora me atingia. Só aquela
luz. Aquela maldita luz.
O telefone voltou a tocar. Tocava e
parava, num intervalo quase cronometrado. Acho que ouvi a campainha também,
nesse meio tempo. Mas era um som mais distante. Até que, por um longo momento,
tudo ficou silencioso. A rua, o telefone, a minha cabeça. Comecei a me sentir sozinho. Pequeno demais
para o tamanho do mundo que me cercava. Voltei pro quarto. Tudo escuro novamente.
Que bom. Voltou ao normal.
Deitei em minha cama, imutável. Estava da mesma forma que deixei quando acordei.
Fitei o teto por um instante. Mexi meus braços e pernas procurando pelas
sombras... Não encontrei nada. Deitei de lado e olhei a parede. Repeti os
movimentos. Nada.
Comecei a me
perguntar se aquela luz era realmente importante. Adormeci.
Abri os olhos algumas vezes. O telefone
tocava. As janelas batiam. As portas também. Cochilava. E tudo voltava a se
agitar. Dentro e fora daqui. Voltava a dormir. Sonhos escuros, borrados.
Misturados àquilo que me fazia pensar ser a realidade.
O despertador não tocou. Olhei para o
relógio, tentando entender que horas eram. Mas os ponteiros também não se
mexiam. Novamente o sol me invadiu a minha retina. Encarei-o, como encararia um
inimigo num duelo mortal. Sentia meus olhos arderem. Insisti. Mas então
fechei-os novamente, me rendi sem me dar conta. Passei a mão pelos cabelos procurando
arrancá-los, mas não tive sucesso. Não eram eles que faziam minha cabeça pesar.
Corri para a sala fugindo de tudo que estava atrás de mim. Olhei para os lados,
procurando algum olhos que estavam atrás de mim. Em algum lugar, escondidos.
Mas não encontrei. Eu estava sozinho. Como sempre.
O telefone voltou a tocar. Estava bem diante de mim. Engoli um pouco da saliva presa
à garganta e olhei novamente ao meu redor. Dessa vez procurando uma desculpa
para fugir daquela chamada.
Resolvi encará-lo. Peguei o telefone e pus em meu ouvido, sem dizer uma palavra.
- Alô? Alô, Sérgio? Meu amor, você tá vivo?
- Eu tô legal.
- Porra! Aonde você se meteu? O que
aconteceu com você?
- Eu tô bem, a gente se fala depois.
Coloquei o telefone na linha antes de arremessá-lo ao chão. Que raiva! E por
que era esse o sentimento que me possuía? Por que não era de alegria que
vibrava o meu peito por saber que eu não estava só como imaginava? Por que nada
daquilo que me pertencia parecia não ter mais sentido?
As perguntas foram sendo jogadas pela minha mente como uma entrevista de
emprego. Como uma sentença de morte. Tudo a minha volta começou a se confundir.
Flutuar. Girando de forma gradual. Precisei de ajuda pra me manter em pé.
Procurei por algum lugar seguro o bastante para me apoiar. Achei a cadeira, que
caiu junto comigo quando apoiei o meu peso. Meu corpo caiu como uma pedra sobre
o chão frio.
Fiquei deitado ali por algum tempo, e apesar de acordado, não conseguia me
mexer. Não sabia se estava consciente. Mas então, o que é estar consciente?
Comecei a me perguntar há quanto tempo eu não olhava pras coisas com atenção. Não
me lembrava como era o meu rosto. Por quanto tampo que eu andava por aí com os
olhos vendados? Manchados de branco. E tons de cinza.
E nesse momento, em que o meu corpo já estava quase tão gelado quanto o chão
abaixo dele, percebi que o sol ainda brilhava lá fora. Levantei-me com
dificuldade e caminhei até a janela. Debrucei-me nela e fitei aquela luz forte
mais uma vez.
Era fim de tarde e, teoricamente, aquela luz não deveria ser tão forte como no
começo do dia, mas me doía da mesma maneira. Dessa vez, meus olhos não se
fecharam. Não deixei. Eles encaram o sol até onde puderam. Pude sentir algumas
lágrimas descendo pelo meu rosto. Me vi correndo no quintal da
casa da minha tia quando era pequeno. Roubando bonecas da minha irmã só pelo
prazer de dizer que eram minhas. Lembrei do dia em que saí de casa sem me
preocupar com o que deixara ali. Sem olhar pra trás. Imaginando um futuro
utópico, que nunca existiu. Percebi que nunca havia me importado realmente para
o caminho que estava seguindo. Percorria-o porque tinha de seguir. Eu estava
morto. E a culpa era minha. Minha em tentar fingir ter um vida completa que
nunca sequer teve significado. Eu não tinha nada. Nada. Mesmo depois de passar
uma vida acreditando possuir tudo.
Subi no parapeito.
Sentia o sol agora inteiro, em todas as partes de mim. Decidi fechar os olhos.
O calor era até reconfortante, como um abraço. Mas doía demais em meus olhos.
Era claro demais, não conseguia ver nada. Mesmo de olhos fechados.
Mas eu não queria me
esconder aquele momento. Não aquele. Seria crueldade demais não poder ver meu
último suspiro.
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